Conto: Máscaras ao vento
17:26
Era um fim de tarde como qualquer outro, o
céu começava a ficar laranja e a temperatura começava a passar de muito quente
a agradável. Era bom ficar em cima daquele morro. Lembro de quando éramos
crianças e meu pai me trazia pra cá, era bom, passávamos a tarde falando sobre
nada e afins. O fim do inverno cai bem aqui, as flores ficam mais bonitas,
dadas as constantes chuvas. Eu sempre adorei a chuva e como ela deixava tudo
mais limpo, puro. Deitar-me embaixo de um edredom e ouvir o barulho, sentir os
cheiros. Cheiro de chuva, pra Camila sempre foi cheiro de Terra molhada. Ela
sempre foi a mais cínica de nós duas. As gêmeas que não combinam em nada.
Camila sempre foi a parte responsável de
nós duas, a parte que mamãe se orgulhavas e os professores adoravam. Eu era a
parte desleixada, a parte que mamãe sempre era chamada por inúmeros machucados
na escola. Eu lembro como era a esperar num banquinho que parecia uma tortura.
"Será que ela vai brigar comigo?", "Será que o papai vem
junto?". Ela sempre chagava com aquele olhar duro e eu dava o meu melhor
sorriso de "desculpa mãe". Ela sempre relevava, mas com aquele bom
discurso de: "Por que você não pode ser que nem a sua irmã?". Não a
culpava por falar isso, Camila sempre lhe deu menos trabalho. Meu pai quando eu
chegava com cara de culpada apenas me olhava feio e dizia: "Depois vamos
conversar". E eu? Eu me controlava para não rir, ele nunca tivera coragem de
levantar a voz para mim, éramos parecidos demais. Éramos duas criaturas livres,
sem regras ou restrições.
Após as broncas e reclamações sempre íamos
pro morro. Era nosso cantinho. Nosso lugar para brincadeiras e piadas internas
onde ninguém, nunca, jamais, saberia de nada. Eles não nos entendiam, era o que
nos dizíamos. Camila apenas sentava perto de uma árvore e olhava, balançava a
cabeça e voltava a ler seu livro de ciência ou algo do tipo. Enquanto eu e
nosso pai corríamos e nos libertávamos fisicamente, ela se libertava
mentalmente, suspirando de prazer ao pegar um bom livro e, finalmente, sentar
ao lado de uma árvore muito confortável e o ler. As vezes eu sentava do lado
dela e tentava ler o que ela ficava tão fascinada lendo. Ela me olhava, eu sorria,
ela balançava a cabeça e voltava a ler. Hipnotizada por aquelas palavras,
aparentemente, incríveis e únicas. De vez em quando brotava um leve sorriso no
canto de seus lábios. "Camila, hora de ir", ela tirava o sorriso,
botava seu melhor olhar duro na cara, fechava o livro e levantava. Sua máscara
voltava a sua bela face séria.
Nunca entendi minha irmã, tão distante,
tão séria. Camila sempre foi um mistério pra mim. Hora de dormir. Entrava no
banho, Camila escovava seus longos cabelos negros. Enquanto eu gostava do
prático, do curto. Camila tinha seus momentos de vaidade ao se olhar no espelho
e escová-los por cerca de 30 minutos, sem parar. Boa noite, boa noite, beijos,
histórias. Eu virava, pegava o celular, virava mais um pouco e lá estava ela, com o mesmo
semblante alegre. Minha irmã feliz estava de volta.
Lembro como se fosse ontem quando papai se
foi. Meu bom companheiro já não estava mais conosco. Pobres meninas perderam o
pai. Camila, no enterro, olhou para o cachão, jogou uma rosa como sua última
homenagem e sentou-se em sua cadeira. Camila já não tirava mais sua máscara,
seu semblante sério predominava. Pobres meninas, seu pai se foi. Minha irmã
encaixotou seus livros, prometeu-se não ser mais feliz e não tirar mais aquela
máscara. Pobre Camila, papai não iria gostar disso. Eu a avisei, eu a disse,
Camila não me escuta há muito tempo. Minha irmã já não se comunicava minha mãe
só chorava. Eu estava no meu canto, como sempre. Talvez estivesse esperando meu
pai me salvar mais uma vez. Ele não iria voltar Camila já avia aceitado isso.
Eu não.
Algo me chama. Um cutucão.
"Vamos!". Camila, minha irmã. Estamos adultas, meninas moças.
Construímos uma casa naquele morro há alguns anos atrás. Nossa pequena
homenagem a papai. Camila voltou a ler. Camila já vive bem sem sua máscara de
menina séria, sem seu semblante de preocupação. Boa menina aprendeu a ser
feliz. Pobre de mim, que passo meus dias olhando pra paisagem que antes
costumava ser minha fonte de diversão com meu pai. Se oriente, menina. Siga em
frente. Ele não volta.
Vamos, menina, seja que nem sua irmã. Cresça.
Mas eu não posso. Camila já era uma pequena adulta quando nosso pai cresceu.
Ele prometeu me ensinar a como ser uma adulta com alma de criança. Ele não
cumpriu sua promessa. Agora sou uma idosa em um corpo de uma adulta, sempre
preocupada, tensa. Aqui estou eu, no fim de inverno de um morro, onde meu
eterno inverno mal começou. Interessante, minha irmã se livrou da máscara, mas,
aparentemente, eu a tomei pra mim. Infelizmente.
0 comentários