Crônica: O casebre
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Era um casebre modesto, escuso em meio à mata e constituído meticulosamente
por tábuas de garapeira desgastada. Coberto por musgo e inúmeras frestas em sua
superfície, o telhado deteriorado acusava o abandono daquele lugar. A vegetação
suntuosa em seu entorno dominava aos poucos a cabana, lentamente transformando o
elemento deslocado em uma peça natural da paisagem. A atmosfera de força e
vitalidade que a floresta transpirava não era compatível a áurea melancólica do
velho casebre, o qual, por mais degradado que estivesse, ainda era detentor de certa
personalidade.
Outrora, o casebre foi concebido e habitado por um solitário
morador. Periodicamente, o senhor visitava o local, despendia alguns dias lendo
sob a luz de um lampião envelhecido ou caçando pequenos animais pelos
arredores. À tarde, ele enchia todos os cômodos com o odor de café fresco, sentava
na varanda e apreciava a bebida sozinho, absorto em pensamentos. Certa vez, tomado
pela raiva e pelas angustia carregadas no peito de uma vida desacertada, o
homem golpeou a mais deslumbrante árvore das cercanias até seu tronco pender e
as mãos sangrarem; e então chorou junto ao riacho próximo, permitindo que as águas
límpidas levassem para longe suas lágrimas de dor.
Passaram-se alguns meses após esse episódio até o homem abandonar
o hábito de suas visitas. Os anos correram turvos para o casebre. Não havia
mais ninguém para acender a lareira, cozinhar no fogão ou preencher a sala com
o calor de uma gargalhada. As janelas entreabertas permitiam a entrada de
apenas fios de luz, denunciando as inumeráveis partículas de poeira que pairavam
no ar. Durante o verão, o sol castigava a madeira, e no inverno, a chuva
cuidava de desorganizar o que ainda se propunha a estar no seu lugar.
O casebre observava o riacho, reluzente, acolhendo os peixes
indefesos, alimentando a exuberante vegetação vizinha, seguindo seu curso
sereno e imperturbável. Não lhe fazia falta que ninguém parasse às suas margens
para banhar o rosto ou saciar a sede. Observava, também, o tronco dilacerado, cujo
o esforço para florir e alcançar os céus era perceptível. Ele se alimentava do
córrego e era ajudado pelos seres para os quais servia de morada. Visivelmente não
estava no auge de sua condição, porém, ainda sim, era capaz de cumprir o seu
propósito.
Para que serve, no entanto, uma cabana se não há ninguém
para abrigar? Para que serve uma casa desabitada, gélida e desconfortavelmente
vazia? Às vezes, o casebre gostaria de, enfim, ser engolido pela natureza. Gostaria
que suas paredes fossem invadidas pelos galhos de árvores próximas, que os
animais da região usassem seus móveis para se esconder e que as fotografias
escondidas na última gaveta do armário simplesmente virassem pó. Mas, corriqueiramente,
ele nutria outros desejos – um tanto mais fabulosos. Imaginava ser habitado
novamente, desta vez, por uma família, quem sabe. Imaginava crianças nadando no
riacho sereno, que alguém colocaria um bolo para assar na cozinha, haviam
conversas acaloradas na modesta mesa de jantar e seria possível adubar o
miserável tronco de árvore cortada.
Acalentada pela esperança de dias dourados, invadidos pela
luminosidade terna do fogo e da vida, a cabana foi atrofiando, entregue ao seu destino
irrefutável. Adormeceu sob as trepadeiras e as flores que por ela cresceram. O tronco
de arvore progrediu e lhe forneceu sombra, abraçando-a, assim como o riacho
cristalino. Em algumas décadas, o casebre estaria encoberto, sendo preciso um
olhar muito esmerado para notar sua presença sob as folhagens. O casebre jamais
desistiria da chance de esbarrar com esse par de olhos delicados e um coração
valente.
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